Caminhando com os mortos no vívido cenário brasileiro
O romance de Micheliny Verunschk foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa 2024
Conheci Micheliny Verunshck a partir de O som do rugido da onça, Prêmio Jabuti de 2022. O livro me marcou profundamente por uma série de razões: por tratar de uma parte tão dolorosa da história brasileira e se costurar, de forma tão bonita, com as cicatrizes identitárias que os processos de embranquecimento deixaram no caminho e com os problemas contemporâneos que a colonização ainda causa no país.
Neste ano, resolvi ler o Caminhando com os mortos, romance da autora de 2023. A sinopse já é promissora:
Um crime choca os moradores de uma pequena cidade no interior do Brasil: uma mulher é queimada viva, em um ritual motivado por razões religiosas, a fim de purificar a vítima e endireitá-la para o "caminho do bem". A violência parece ter se tornado parte da paisagem: desde que uma comunidade evangélica se instalou na região, episódios do tipo se tornaram cada vez mais comuns.
Antes mesmo de começar a leitura, achei a escolha de analisar a expansão da religião evangélica a partir da perspectiva da violência e conservadorismo corajosa e, principalmente, necessária, uma vez que temos uma bancada evangélica enorme no Congresso e impactos diretos da sua visão de moral nos direitos das minorias.
O que eu não esperava era a perspectiva narrativa — a história é contada em primeira pessoa e começa com um diálogo em uma sala de investigação. Entramos, então, no fluxo narrativo de Lourença, mãe da vítima, e outras personagens. Desenrolamos o fio desse crime, que se envereda com a história da cidade e dos protagonistas, reflexões sobre o que é ser mulher, consequências do luto, a dinâmica das relações entre mães e filhas e, ainda, isolamento cultural. O livro também coloca no centro da discussão o pecado que é ser mulher, dos quais somos culpadas desde que nascemos.
Se Deus é grande, o mato é maior.
Caminhando com os mortos, Micheliny Verunshck
O romance se passa em uma cidade muito pequena e pobre como tantas existentes no Brasil. O assentamento de uma igreja promete o acolhimento dos cidadãos, vítimas da ausência do Estado, e ocupa parte desse lugar. Lourença era católica, mas se converte — sua busca por Deus é desesperada, uma ânsia por conforto em meio ao sofrimento que marcou sua vida. Acompanhamos a radicalização de seu pensamento, que também ocorre na comunidade, e as consequências dele na dinâmica da sua família e da cidade.
Apesar de parecer uma distopia, a pergunta que me rondou após a leitura do livro “como isso pode acontecer?”, é a mesma que me ronda quando acompanho os discursos de pessoas públicas com conotação homofóbica, racista, antidemocrática e misógina. Assim, Caminhando com os mortos é um retrato extremado de um recorte importante da realidade brasileira.
O desenvolvimento, aquela palavra tão dura quanto impalpável, chegando para continuar mantendo cada um no seu cada qual, cada qual no lugar a que pertencia.
Caminhando com os mortos, Micheliny Verunshck
Além da história, em si, Verunshck diz muito a partir do não dito. O subtexto tem um lugar muito bonito e relevante na narrativa; o cenário surge também como protagonista, parte indissociável da história. A escolha da primeira pessoa e da imersão desconfortável no fluxo de pensamento das personagens coloca o leitor no centro de um conjunto de dúvidas, dores e certezas que, apesar de tudo, cria empatia.
É mais uma grande obra de Micheliny Verunshck e fiquei muito feliz quando vi que foi premiado com o Oceanos. Se você não leu e gosta de literatura brasileira contemporânea, sugiro colocar na sua lista.
Pra comprar: aqui, no site da Companhia das Letras, ou aqui, na Amazon.
O que ando lendo?
Continuo a ler uma das obras mais importantes de Jon Fosse. Ainda estou nos livros I e II, The Other Name, de Septology. Fosse com certeza se tornou um dos meus autores favoritos neste ano e tenho consumido tudo que consigo da carreira. Ainda faço uma resenha sobre.
O próximo na minha lista é o De onde eles vêm, novo romance de Jeferson Tenório. Estela sem Deus e O avesso da pele são obras fabulosas e não posso esperar menos desse livro novo.
Com incêndios,
Paula.




amei!! vou colocar na lista junto com o do jeferson <3
Já tem anos (juro) que não sento para ler um romance, mas fiquei com muita vontade de me aventurar com esse!!